O número de adotantes no Brasil é superior ao de crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Como boa parte desses adotantes tem preferência por crianças menores, não portadoras de doenças e não pertencentes a grupos de irmãos, são muitos candidatos à adoção fora do perfil. O poder Judiciário brasileiro, que coordena o processo, amparado na tecnologia, vem enfatizando a adoção tardia. O termo adoção tardia é utilizado quando a criança adotada já possui um desenvolvimento parcial em relação a sua autonomia e interação com o mundo, em geral após os três anos de idade. Mas, não há uma idade mínima formal para caracterizar a adoção tardia.
Nos últimos anos, em diversos Estados brasileiros, juizados promovem campanhas de incentivo à adoção tardia. Em 2017, o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou a campanha “Adote um Boa Noite”, com a finalidade de incentivar a adoção de crianças à margem do perfil desejado pela maioria dos adotantes. No primeiro ano de campanha, cerca de 30% das crianças que participaram do projeto foram adotadas ou estavam em processo de convivência. As crianças e adolescentes habilitados à adoção tardia disponíveis no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) passaram por processo de estudos técnicos e autorização dos juízes competentes para fazer parte da campanha. As redes sociais e as vídeo chamadas são a base dessa campanha, pela possibilidade de interações preliminares.
Essas ferramentas foram utilizadas pelas mães solo Natália Giacomello, graduada em Filosofia e pós-graduada em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais em Áreas Urbanas e Márcia Carraro, graduada em Artes Cênicas, residentes em Bento Gonçalves, no processo de adoção dos adolescentes Vitor (14) e Maria Vitória (15). Nas entrevistas a seguir, Natália e Márcia relatam como foi o processo de aproximação com os adolescentes nessa adoção tardia e demonstram um amor intermitente e interminável.

NATÁLIA GIACOMELLO E VITOR: “O amor é intermitente, nunca abandona”
Há quanto tempo você convive com o Vitor?
Natália – No mesmo teto, há um ano e seis meses. Falamos que, na adoção, as mães e pais também gestam. Esse processo de gestação se inicia em diversos momentos: quando você conclui sua habilitação, quando você inicia o processo de aproximação com seu filho (a) ou, ainda, quando o desejo e decisão de ser mãe ou pai é tomado. Mas, eu iria mais além. Diria que adotei o Vitor desde o momento em que decidi ser mãe por adoção. Isso aconteceu muito cedo, com 10 anos iniciei a construir essa ideia. Casualmente ou não, quando jovem, pensava em ser mãe aos 23 e o Vitor, hoje, tem 14 anos.
A busca era por um menino ou independia o sexo?
Natália – Sempre pensei em ser mãe de um menino. Contudo, é preciso perceber que, independente de nossos filhos serem adotivos ou biológicos, eles são e serão do mundo. Então, precisamos assumir que a questão de gênero é uma construção. É importante comentar que uma das etapas finais do processo de habilitação é a escolha do perfil de filho preterido. Nesse momento, você definirá o que aceitará: cor, raça, idade, sexo, HIV positivo, deficiências, doenças, grupo de irmãos e outras categorias mais. Mas, posso selecionar que quero um menino e, com o tempo, meu filho manifestar o desejo de se tornar uma mulher trans. Falo isso, pois precisamos estar abertos para as escolhas de nossos filhos, e a orientação sexual é uma delas.
Com quantos anos ele veio morar com você? De onde ele veio?
Natália – Quando ele veio morar comigo estava com 12 anos e vinha de um abrigo de Campo Largo, Paraná.
Vocês se conheceram por um aplicativo alternativo? Hoje, esse aplicativo foi institucionalizado pelo Estado?
Natália – Sim. Atualmente existem diversas ferramentas de busca ativa, voltadas a dar visibilidade e aproximar pretendentes à adoção com as crianças e jovens que constam no Sistema Nacional de Adoção – SNA, aptos para serem adotados. Algumas dessas ferramentas são os aplicativos, onde constam informações gerais sobre algumas crianças. A Comissão Estadual Judiciária de Adoção – CEJA, @cejapernambuco, do estado de Pernambuco, dá visibilidade e fortalece a identidade do futuro adotado, através do aplicativo Instagram. Veja bem, é importante falar, e todos nós sabemos do processo histórico de exploração das crianças, das mulheres, mães pretas, mães pobres, mulheres indígenas e o vínculo entre a violência contra as mulheres. O racismo e a desigualdade estão diretamente relacionados ao desamparo à infância. Falo isso porque as ferramentas de busca ativa também sofreram preconceito, talvez pelo receio das pessoas de que fosse mais uma forma de expor a criança. Hoje essas ferramentas estão muito bem estruturadas, institucionalizadas e servem como aporte para a adoção, sobretudo, de crianças com idade a partir de oito anos e de grupos de irmãos.
Qual foi o tempo de demora do processo, entre a decisão de adotar e receber ele em casa?
Natália – A decisão de adotar me acompanha desde criança. Sou filha por adoção, uma adoção muito bonita e bem-sucedida. Sempre quis adotar. A ideia de gravidez até apareceu quando já estava com uns 30 anos, mas a prioridade era a adoção. Conheci o Vitor, meu filho, em maio de 2020, durante a pandemia. Começamos um processo de aproximação através das ferramentas online e, em fins de outubro do mesmo ano, ele veio morar comigo. Fomos muito bem acolhidos pelos profissionais do Fórum de Campo Largo e também do abrigo onde ele estava.
Porque você optou pela adoção tardia?
Natália – Então, para se ter uma ideia, fala-se de adoção tardia quando nos referimos a crianças a partir de três anos. Sempre achei que tinha o perfil para adotar crianças maiores. Um lembrete interessante para todos que pensam em adotar, para ler diariamente antes de colocar em prática: quem pretende adotar precisa olhar e se adaptar ao perfil das crianças e jovens disponíveis, não ao contrário. A adoção não é um mercado, muito menos nossas crianças são produtos da prateleira. Segundo dados recentes, existem no Brasil quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas de acolhimento e instituições públicas. Dessas, 5.040 estão aptas para a adoção e há 36.437 pretendentes a adoção. Percebe como essa conta não bate?
Como foi o processo de adaptação ao presencial entre você e ele?
Natália – No início, tudo é novo para ambas partes. Ouvia falar que o processo de adaptação varia de um a dois anos. Estamos indo para o segundo ano juntos. Então, já passamos por todas as agendas normais de um ano: aniversário, rotina da casa, escola, datas comemorativas e passeios. O convívio faz com que nos conheçamos melhor e a empatia fortalece os vínculos, que é o principal nesse início, ao meu ver.
E com seus familiares?
Natália – Sou filha única, minha mãe é falecida, sou mãe solo. Portanto, meu núcleo familiar é pequeno e o meu porto seguro, na época, era e ainda é meu pai. Recebi dele todo apoio. Da sua companheira também. E de outros familiares, como tias e primos, o mesmo apoio e incentivo. Contar com isso não tem preço. Contudo, houve, no início, aqueles questionamentos do tipo: qual idade você vai adotar? Lembro de meu casal de avós perguntando: qual a cor dele? Eu respondi: PRETO. E minha avó retrucou: preto, preto? Sempre temos que enfrentar estigmas, preconceitos, desinformação e racismo ao falarmos de adoção, é inevitável.
Quais aspectos da chegada do Vitor estão sendo positivos?
Natália – Em todos, pois filho é aprendizado intermitente e interminável. O amor é intermitente, não abandona. É desafiador, mas é o ciclo do cuidado, do bem querer. Como disse a um amigo: preciso agradecer, pois esse título de mãe quem me deu foi o Vitor. Gosto de falar que, funcionalmente e socialmente, exerço o papel de mãe, mas meu coração se sente muito mais na responsabilidade de guardiã desse ser humano que é o Vitor, meu filho. Nossa caminhada está apenas começando, mas os frutos são de conquistas. Estou muito feliz!
Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas durante o processo de adoção, ocasionadas por processos burocráticos?
Natália – A parte da habilitação e dos papéis foi bastante ágil. O que dificulta é a falta de informações. Estamos à mercê dos recursos humanos de cada Comarca. No meu processo de habilitação, que ocorreu em Bento Gonçalves, não houve nenhum espaço para maiores preparações, como grupos de apoio, por exemplo, ou uma atenção maior para a escolha do perfil da criança. Ao participar de grupos de apoio online, durante a pandemia, percebi que outros locais – alguns em parceria com universidades, ONGs ou nas próprias Comarcas – desenvolvem um atendimento mais preparatório para os pretendentes à adoção, e isso é muito importante.
Suas considerações gerais.
Natália – Sempre digo para quem também quer adotar, para iniciar o processo interagindo efetivamente com esse assunto: pesquisar, estudar, preparar seus papéis. Assim, a adoção deixa de ser uma pretensão de um gesto “bonito” ou “solidário”. Adentramos no universo real, que precisa ser muito mais do que o desejo individual ou do casal de ser pai ou mãe. Precisamos de um amadurecimento cultural, político e social sobre o ato de adotar: há muitos lugares onde as famílias monoparentais e homoafetivas, por exemplo, são barradas na consolidação de seus projetos familiares. Nossos filhos têm história. São histórias fortes, mas são as suas. As nossas histórias, e grande parte dessas histórias, estão debruçadas nas desigualdades sociais, na exploração, no racismo, nas violências ao qual o estado brasileiro permanece tendo dívidas. Então, será necessário ensinarmos a nossos filhos esses temas sociais, culturais, políticos, para que eles possam se compreender no mundo. Lutar por direitos, pelo cumprimento da Constituição, é lutar pela vida dessas crianças. Eu não tenho dúvidas de que meu filho está construindo para si esse lugar de responsabilidade para que, futuramente, ele possa contar sua experiência a outras crianças, pais e mães. Ter sucesso é inspirar sucesso ao outro. Acerca da adoção, esse sempre foi meu senso de responsabilidade. Como mãe, ingressei num caminho de interminável estudo sobre como desempenhar essa missão, cada dia sendo melhor.

MÁRCIA CARRARO E MARIA VITÓRIA: “Para mim, era muito importante saber se ela também me acolheria como mãe solo”
Como e quando você e a Maria Vitória se conheceram?
Márcia – A possibilidade da adoção tardia chamou a minha atenção e comecei as buscas no Instagram do Ceja Pernambuco e no Adoção Brasil, aplicativos que apoiam a busca ativa de crianças e jovens entre 8 e 18 anos. Em julho de 2021, numa das buscas nas plataformas, vi uma foto de uma adolescente no Instagram do Ceja Pernambuco. Conforme instrução encontrada no perfil, entrei em contato com a Assistente Social de Pernambuco, através de e-mail, para formalizar meu interesse. Fui informada que ela estava iniciando uma aproximação com outra família. Continuei minhas buscas. Em 6 de janeiro deste ano, a Assistente Social me procurou, informando que o vínculo da menina com a família não tinha dado certo e que ela havia retornado para o abrigo. Eu era a próxima na lista de interessados. Nesse contato, a assistente também repassou, em segredo de justiça, informações sobre Maria Vitória: histórico de vida, de saúde e escolar e também sobre a família de origem. Conversei com Psicóloga, Assistente Social, Diretora, Cuidadora e demais envolvidos no acolhimento dela na casa, para entender se a personalidade era compatível com a minha, se eu daria conta de ser uma mãe adequada para ela. Os adotantes têm que ter consciência que filho não é loteria, é escolha e de ambas as partes. Para mim, era muito importante saber se ela também me acolheria como mãe solo, se ela se sentiria bem comigo na decisão de iniciarmos uma família. É era importante para ela ter uma mãe que a acolhesse com a história anterior. Que desse respaldo para ela se entender dentro da nova família, de conversar sobre seus desejos, frustrações, sentimentos de pertencimento, de abandono, de adequação e demais emoções que vêm junto com a adoção. Antes de nos conhecermos via vídeo chamada, o Ceja enviou algumas fotos da Maria Vitória. Eu também enviei algumas fotos, além de vídeos, falando sobre a minha pessoa e sobre meus trabalhos como atriz, com contação de histórias.
Como foi o processo de aproximação?
Márcia – Quando percebi que eu daria conta de sua história de vida, que tinha empatia pelas vivências e que queria muito conhecê-la e conversar com ela, iniciamos nosso processo a distância, por vídeo chamadas. Nos conhecemos por vídeo chamada em 7 de fevereiro deste ano, e seguimos conversando pela ferramenta tecnológica, uma hora por dia, de segunda a sexta-feira. Depois disso, embarquei para o Recife para buscá-la. Conheci Maria pessoalmente no último dia 4 de abril, no abrigo. Ficamos juntas em Recife durante quatro dias. No quinto, retornamos para Bento Gonçalves, onde resido.
Entre a decisão de ambas e a vinda dela demorou quanto tempo?
Márcia – O estágio de convivência presencial demorou um pouco mais para iniciar porque meu cadastro no Sistema Nacional de Adoção estava desatualizado, o que fez com que eu visitasse o fórum de Bento Goncalves algumas vezes. O processo de adoção no Brasil é bem rápido em casos de Adoção Tardia, porque leva em consideração o bem-estar dos candidatos das faixas etárias abrangidas. O tempo de aproximação e de espera no processo de adoção tardia costumam ser períodos curtos, em comparação ao de escolha por um bebê ou criança menor de três anos. Acompanhei o processo de Adoção Tardia do Vitor, meu afilhado, feito pela amiga Natália Giacomello. Isso também facilitou muito na escolha e no entendimento dos trâmites legais. Busquei ainda apoio na equipe do DNA da Alma, que faz um trabalho magnífico com adotantes e novas famílias. Assim, nosso processo foi rápido. Iniciamos em fevereiro de 2022 e em abril ela já estava aqui comigo. A audiência definitiva para a nova documentação dela será no final de junho deste ano. Nós duas já nos consideramos mãe e filha, independente desse término legal do processo.
Quais foram as maiores dificuldades?
Márcia – No período de aproximação por vídeo chamada, a dificuldade era a inconstância de tempo e horário. Nem sempre a casa onde ela morava podia atender as vídeo chamadas nos horários programados. Mudei meu horário de trabalho três vezes durante esse processo para me adaptar às possibilidades de contato estabelecidas pela casa lar. Atualmente, nossa maior dificuldade é o tempo de estudo, porque o ensino no Norte do país é diferente daqui e temos muito o que recuperar. Além disso, ela não estava acostumada a fazer tarefas escolares. Este é o conflito que temos no momento, fora isso, está tudo correndo bem, dentro dos conformes. O fato de conversarmos bastante e de passarmos muito tempo juntas está facilitando essa primeira etapa de convívio. Infelizmente, não há licença maternidade para mães de crianças a partir de 12 anos, mas consegui organizar e reduzir meu tempo de trabalho, fazendo algumas concessões, até junho deste ano.
Como está sendo o processo de adaptação?
Márcia – Estamos nos adaptando ainda. Há diferenças culturais, mas estamos indo bem. Nós somos muito afetuosas e conversamos muito sobre tudo, sobre o passado, sobre os acontecimentos do dia e vamos estabelecendo ações para o dia e para a semana. Às vezes nos irritamos, como já disse, por causa de temas da escola, mas fora isso nossa convivência está sendo ótima. Acredito que o foco desse período é estabelecer confiança mútua e diálogo para que possamos nos entender como mãe e filha e aprender juntas a transformar nosso dia em convivência positiva e produtiva. A escola e o mundo nos exigem incumbências propícias à idade dela, mas o nosso mundinho particular está cheio de amor e bem-estar.
A busca era por menina ou independia o sexo?
Márcia – A busca independia do sexo, poderia ser menino ou menina a partir dos 8 e até os 18 anos. Trabalhei em locais frequentados por crianças de abrigos, aptas a serem adotadas. Conheci muitas crianças amorosas, carentes de atenção e de boa índole, só aguardando uma oportunidade de ter uma família. Percebi que a romantização que muitos casais têm em relação a adoção de uma criança mais jovem era desnecessária. A criança tem sua personalidade, não deve ser criada para ser nossa imagem e semelhança, nem para corresponder às nossas expectativas profissionais. Há muitas crianças doces e tranquilas, agitadas e risonhas em todas as idades buscando um pai, uma mãe que as aceitem como são, com amor, ajudando-as a crescer como pessoas do bem. Acredito que os adotantes também devem se preparar bastante para receber essa criança, porque é um bebê que vem para a sua vida. No meu caso, um bebê de 15 anos. Estamos exatamente nessa fase de nos conhecermos, de eu dedicar meu tempo a ela, de organizar meu dia em função do dela, e não ela se organizar a partir do meu tempo, porque esse é um momento dela ser filha e de eu ser a responsável por tornar essa adaptação mais tranquila, humanizada e prazerosa, já que ela nasce não só para mim como filha, mas como neta, como afilhada, aluna e tantas outras atribuições que são esperadas, tanto para um bebê que chega à família como para uma adolescente que se muda para uma cidade diferente e que não tem outro vínculo a não ser a mãe, como no meu caso.
Fotos: Kátia Bortolini