O fabuloso “João dos Livros”
Ninguém lembra de Johannes Gutenberg. Sim, ele mesmo, o inovador artesão de Mainz, o homem que legou ao mundo uma das maiores invenções da história: o livro impresso. Uma criação tão simples quanto genial. Sem o livro e viveríamos ainda nas trevas do conhecimento. Penso que todas as bibliotecas deveriam ter um quadro na parede a reverenciar o “velho João”.
A vida de Gutenberg, no entanto, não foi nada fácil. Aos trinta anos, ele ainda não tinha conseguido grande coisa. Mas Johannes era um empreendedor nato. Sonhava em abrir um negócio e ganhar muito dinheiro. Uma regra básica do capitalismo, porém, já existia antes mesmo desse florescer: dinheiro chama dinheiro. E a falta dele chama dificuldades. Gutenberg sentia isso na carne: ele tinha os bolsos vazios. Mas uma vontade ardente e determinante de vencer.
O primeiro negócio de Gutenberg – uma oficina de polimento de espelhos – faliu. Ele fica endividado e demora cinco anos para sair do vermelho. Livre das dívidas, aposta todas as fichas em uma nova empreitada. Contrata meia dúzia de assistentes e monta uma gráfica em sua antiga casa. É de lá que sai, pela primeira vez na história, um livro impresso: uma pequenina gramática com apenas vinte e oito páginas e nenhum luxo editorial. O livreto, contudo, foi um sucesso: ganhou fama entre os estudantes da época e seguiu sendo copiado centenas de vezes ao longo de vinte e quatro diferentes edições. Infelizmente, nenhum exemplar completo chegou aos nossos dias.
Gutenberg, porém, queria mais. E então lhe surge a grande ideia: imprimir a Bíblia. Os livros religiosos eram o melhor mercado da época: por que não imprimir o maior deles? Mas para isso era necessário aumentar ainda mais a oficina. Novas dívidas a caminho e nosso inventor encara a empreitada. Mais de vinte pessoas trabalhando diariamente durante três exaustivos anos e o sonho estava concretizado: cento e oitenta exemplares da Bíblia estavam prontos. Um trabalho hercúleo. Corria o ano de 1455.
Gutenberg então pega alguns exemplares da Bíblia e vai expô-los na Feira do Livro de Frankfurt. Imaginar essa cena é algo fantástico, sublime: Gutenberg, em sua pequena banca de livreiro, expondo aos passantes aquele que viria a ser o livro mais famoso e cobiçado de todos os tempos. Como eu gostaria de poder entrar em uma máquina do tempo e ir parar na feira do livro onde Gutenberg expôs sua maravilhosa Bíblia, comprar uns três ou quatro exemplares e voltar para o presente! Eu voltaria milionário, aliás, pois uma Bíblia de Gutenberg completa é avaliada, hoje, em cerca de trinta milhões de dólares. Uma única folha avulsa chega a valer cem mil dólares no mercado de livros raros.
Quando tudo corria às maravilhas, mais problemas: o sócio que havia emprestado dinheiro a Gutenberg exige o pagamento. Sabia ele que Johannes não teria condições de pagar, e isso significava que as oficinas lhe seriam repassadas, por força da hipoteca que assegurava a dívida. Gutenberg estava fora do negócio. Nunca mais se recuperaria da traição.
Os últimos tempos de Gutenberg estão envoltos sob um manto de mistério. Especula-se que lá pelo ano 1460 ele estava envolvido na produção de outra Bíblia. Se isso é verdade, até hoje não sabemos ao certo. Viveu até o fim da vida em Mainz, onde nasceu. A idade de sua morte é duvidosa, mas estima-se que rondava os setenta anos. Gutenberg foi enterrado na basílica de São Francisco. Infelizmente, a igreja foi destruída em 1742 e os restos mortais do “velho Johann” perderam-se para sempre.
A semente, no entanto, fora lançada. A invenção de Gutenberg começava a se multiplicar. Logo, oficinas seriam instaladas por toda a Europa. Em 1480, mais de cem cidades europeias tinham manufaturas de impressão. Em 1500, ano em que Cabral aportava pelo Brasil, quinze milhões de livros saíram das prensas do velho mundo. O mercado livreiro embrionário já empregava cerca de vinte mil pessoas. A Galáxia de Gutenberg iniciava sua inexorável expansão.
Da oficina de Gutenberg emanou a luz do livro. A invenção maravilhosa que mudou o mundo para sempre.
"OS OUTROS" SOMOS NÓS
No trânsito, presencio uma discussão (infelizmente, não raras nestes dias do “cada um por si”). Gestos pouco educados, faces ruborizadas pela raiva, palavras afiadas como navalhas cortando o ar quente da tarde. Enquanto observo a cena, a famosa frase do filósofo Sartre ecoa na minha mente: “O inferno são os outros”. A cólera, a falta de empatia, a incapacidade de se conectar verdadeiramente, tudo isso se materializava ali, naquela rua congestionada.
Do outro lado da via, no entanto, um respiro de humanidade: uma senhora alimenta pombos, o rosto iluminado por um sorriso gentil. Um grupo de crianças brinca, a alegria contagiante ressoando pelo ar. Um jovem casal troca olhares apaixonados, a beleza do mundo na candura do instante. “O paraíso são os outros”, sussurrei, lembrando das palavras do escritor português Valter Hugo Mãe.
Sartre e Hugo Mãe, dois olhares sobre a mesma moeda. O inferno e o paraíso, raiva e bondade, dor e beleza, solidão e conexão… tudo coexistindo, como as faces de uma só realidade. Qual dos dois pensadores tem razão?
Nenhum e os dois ao mesmo tempo. Depende de como encaramos a vida e o outro que nela vai conosco. A ideia de “inferno” e “paraíso” nas relações humanas pode ser uma questão de perspectiva, e talvez o impacto do outro seja apenas um catalisador para revelar o que já existe dentro de nós. Em vez de atribuir a culpa aos outros, ou tê-los como mais “bárbaros”, podemos olhar para dentro e questionar: o que as interações com as outras pessoas despertam em mim? O que já mora em meu ser que é ativado na relação com os demais?
O olhar do outro nos desafia a confrontar nossos medos e desejos, a explorar nossas contradições e a descobrir nossa verdadeira essência. A interação humana, portanto, não é nem inferno nem paraíso, mas sim um campo de experimentação, um laboratório onde podemos nos conhecer melhor e nos transformar.
Se, de fato, e como ensina a psicanálise, só nos enxergamos pelo olhar do outro, então tanto o “inferno” quanto o “paraíso” residem nessa relação. Os outros, afinal, são espelhos que refletem nossas próprias sombras e luzes, e cabe a nós escolhermos qual imagem queremos contemplar.
O que vemos, no entanto, proliferar no dia a dia das nossas cidades? A total falta de empatia, a raiva, a segregação, a intolerância que explode em violência por um simples arranhão no carro alheio ou o bate-boca na fila do supermercado. Os outros, então, se transformam em realmente o nosso inferno, e, pior, nós sendo o inferno deles.
Os outros não são nem inferno, tampouco paraíso: eles apenas “são”, assim como nós. Cabe aos dois lados lembrar que só somos, quando juntos. Para buscar um pouco mais de paz nessa relação, talvez ajude lembrar sempre que, para os outros, “os outros” somos nós.
O HOMEM MAIS FELIZ DO MUNDO
A narrativa nos foi legada pelo historiador grego Heródoto. Conta ele que no século V antes de Cristo, existia um reino muito poderoso chamado Lídia, localizado na Ásia Menor (onde hoje é a Turquia). Lá, aos trinta e cinco anos de idade, subiu ao trono o rei Creso. Ele era um bom monarca; um tanto esnobe, é verdade, mas o povo da Lídia não tinha do que se queixar.
Eis que certo dia chega à Sárdis, capital do reino, um viajante vindo de Atenas, de
nome Sólon. Homem muito sábio, logo despertou a vaidade de Creso, que ordenou fosse ao visitante, mostrada toda a opulência do reino. Creso, você já entendeu, queria se exibir.
Após o tour por riquezas extraordinárias, que incluiu até piscinas gigantescas transbordantes de pedras preciosas, Sólon foi levado à presença do rei. Creso o aguardava em seu modelito básico: um manto cravejado de diamantes e bordado em ouro.
“E então, caro Sólon” – disse Creso – “ agora que viste as maravilhas de meu reino, me responda: quem é o homem mais feliz do mundo?”. Sólon, que não se deixara impressionar por toda aquela fenomenal fortuna, responde: “É Telos de Atenas, majestade”.
Creso ficou estarrecido. Perguntou então a Sólon quem era aquele tal de Telos, de quem nunca tinha ouvido falar. Como ele poderia ser o homem mais feliz do mundo?
Sólon então explica o porquê da escolha: “Telos era morador de Atenas, nem pobre, nem rico, com uma família numerosa e bela. Morreu de forma nobre, defendendo a cidade que amava. Até hoje é lembrado com láureas”.
Creso não entendeu muito bem o que Sólon estava querendo dizer. “Como um homem que já morreu pode ser o mais feliz do mundo?”, pensou ele. Creso, então, não satisfeito, perguntou a Sólon quem viria logo após Telos no ranking de felicidade. Afinal, o segundo lugar até que não estaria tão mal.
A resposta de Sólon traz nova decepção: “Cleóbis e Bíton” – diz ele –, “dois irmãos de uma nobre família de Argos, honestos e grandes guerreiros. São verdadeiros nacionais. Morreram de total fadiga, após percorrerem quarenta e cinco estádios puxando a carroça que levava a própria mãe doente ao templo”.
Creso, vendo que nem a medalha de prata da felicidade lhe fora reservada por Sólon, se enfurece de vez e vocifera com o visitante: “E eu, serei menos do que esse Telos e dos dois irmãos heróis? Além disso, estão todos mortos! Por acaso não viste toda a minha riqueza? Eu, o grande rei, vivo e afortunado?”.
Ao que Sólon argumenta: “Prezado rei, vossa majestade realmente é um homem muito poderoso e rico, além de admirado por seus súditos. No entanto, quem garante como estarás amanhã? Veja, só posso dizer se um homem é feliz quando sua vida se esgota, para que saibamos se ele morreu na felicidade ou na desgraça”.
Creso seguiu sem compreender. Ao contrário, ficou ainda mais bravo com Sólon. Assim, ordenou aos soldados que o mandassem embora de mãos vazias, sem nenhum dos presentes que a ele tinha reservado. Creso não admitia que alguém não o considerasse o homem mais feliz do mundo.
O tempo passou. Dois anos depois, Creso começou a se incomodar como os vizinhos Persas (atual Irã), que estavam ampliando o território de forma ameaçadora, sob o comando do rei Ciro. Creso, que não era de levar desaforo para casa, declara então guerra ao reino inimigo. Durante doze dias e doze noites os soldados dos dois lados guerreiam de forma cruel. Ao final, o exército da Lídia é derrotado e o rei condenado à morte.
O fim de Creso estava próximo. Já em seu suplício, ao alto da fogueira e contemplando a própria ruína, ele então começa a gritar: “Sólon, Sólon, Sólon!” Ciro, ouvindo aquilo, chama os intérpretes para interrogar Creso. Quem era esse Sólon que Creso tão fortemente evocava? Creso conta então toda a história sobre o aviso de Sólon a respeito da felicidade.
Ciro, emocionado, perdoa Creso, e ordena que o tirem do fogo. Esse, porém, já
está em altas chamas, que em vão os soldados tentam apagar. Com as labaredas
lhe alcançando os pés, Creso, em desespero, ergue as mãos para o céu e suplica
ao deus Apolo: “senhor dos oráculos, me salve deste fim terrível!”
Creso ainda bradava quando irrompeu uma chuva diluviana sobre o local,
apagando de vez o fogo. Ciro, impressionado com a história de Creso, o nomeia
conselheiro do rei. Creso, a partir daí, se torna um homem sábio e ponderado. E
muito mais humilde. Ele aprendera a lição de Sólon: a felicidade é sempre frágil e
provisória, e a nenhum homem – nem mesmo ao mais rico de todos – cabe saber
até quando será feliz.